A viúva de um cortador de cana, morto por infecção generalizada após uma experiência de trabalho degradante em Minas Gerais, desconhecia o direito à pensão pela morte do marido. Ela conseguiu o benefício com a ajuda de uma clínica de direito especializada.
Enquanto escritórios acadêmicos tradicionais atendem demandas jurídicas variadas de forma gratuita, essas iniciativas têm foco em escravidão contemporânea.
A Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) foi a primeira do país. De 2015 até hoje, já orientou cerca de 200 pessoas e propôs mais de 90 ações individuais trabalhistas, segundo Lívia Miraglia, coordenadora do projeto, que é inspirado em modelo da Universidade de Michigan.
A maioria dos assistidos é encaminhada ao serviço por Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Outros chegam via defensoria pública ou por contra própria.
Um dos primeiros casos atendidos foi o de um homem resgatado no sítio do próprio sobrinho, após 13 anos de escravidão. Além de jornadas exaustivas no trabalho doméstico e na lavoura, ele sofria agressões do empregador. Com a assistência jurídica, recebeu indenização de R$ 300 mil.
As iniciativas acadêmicas se desdobram no ensino, na pesquisa e na extensão. A clínica mapeia autos de infração, analisa a eficiência das respostas judiciais, examina ações criminais e trabalhistas, estuda decisões sobre tráfico internacional de pessoas e dimensiona a escravidão doméstica no país. Diagnósticos obtidos sugerem aprimoramentos para as instituições envolvidas no combate a esses crimes.
Os estudos são feitos com Ministério do Trabalho, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Organização Internacional para as Migrações (OIM).
A equipe da UFMG é formada por 15 estagiários, três advogadas e dois coordenadores. Um deles é o professor de direito penal e juiz federal Carlos Haddad, que já vinha de uma atuação em Marabá (PA), onde sentenciou casos de escravidão contemporânea. Ele convidou a professora de direito do trabalho Lívia Miraglia para criar e coordenar o projeto da clínica. Já que não conta com financiamento próprio, a iniciativa recebe verbas de instituições parceiras, como do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho.
Os alunos da graduação podem cursar uma disciplina, oferecida pelos coordenadores, para formação teórica e sensibilização sobre o tema. Entre as metodologias, há técnicas de entrevista, simulação de audiência, elaboração de peças processuais e discussão de casos.
A clínica também leva a estudantes dos ensinos fundamental e médio uma oficina de orientações sobre exploração trabalhista. De acordo com Miraglia, há alunos no interior do estado que se identificam com o tema e reconhecem parentes como possíveis vítimas.
O projeto tem parcerias com outras universidades do país para capacitação. "Nosso propósito é disseminar a ideia e ter polos de atendimento em diversas localidades", afirma Miraglia.
A Universidade Federal de Uberlândia (UFU) tem programa semelhante. Desde a fundação da Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo (Cete), em 2016, até agora, o núcleo já ofereceu assistência jurídica e social a mais de 200 trabalhadores. Na equipe, há 20 estudantes.
Segundo a professora de direito e fundadora, Márcia Leonora Orlandini, o grupo já acompanhava o método de enfrentamento do trabalho escravo criado na Universidade de Michigan.
A Cete atua no caso de Madalena Gordiano, trabalhadora doméstica escravizada por uma família e resgatada em 2020. Foi a clínica que negociou o acordo trabalhista e anulou empréstimos fraudulentos feitos pelos empregadores em nome da vítima. Hoje, a Cete trabalha como assistente de acusação no processo penal por redução à condição análoga à de escravo e outros delitos correlatos imputados ao responsável pelo crime.
De acordo com o professor de direito da UFU e coordenador adjunto da Cete, Gustavo Marin, as demandas das pessoas atendidas superam as questões jurídicas. A assessoria, feita com parceiros da clínica, vai desde acompanhamento psicológico até capacitação profissional e curso de educação financeira.
"Dentro disso, desenvolvemos o Mais Humanos, um projeto de extensão multidisciplinar permanente, que foca no pós-resgate, no acolhimento de pessoas resgatadas para auxiliar nessa recuperação da autonomia."
No Pará, iniciativa parecida funciona desde setembro de 2022. O grupo já iniciou o atendimento de um caso no meio rural, segundo Valena Jacob, professora de direito e coordenadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da UFPA (Universidade Federal do Pará).
Os atendimentos são restritos ao estado. Cinco professores, uma secretária e quatro estudantes da pós-graduação atuam na assistência jurídica.
Em janeiro de 2023, UFPA e UFMG fecharam um acordo de cooperação para promover uma rede de clínicas jurídicas no país. Há projetos de parcerias com universidades do Amazonas e do Mato Grosso.
"O ensino jurídico não poderia mais continuar generalista e teórico, diante dos problemas cotidianos e da realidade vivenciada pela população brasileira", diz a professora Márcia Leonora Orlandini.
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