Dalton Trevisan inventou uma linguagem, um léxico, uma sintaxe. "Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete", sonha seu narrador sempre reiterado, numa busca da concisão absurda e contundente, em que o que não está dito, por elipse e nunca lapso, está tão presente como cada uma das palavras que forma seu universo.
Quem lê Dalton nunca mais ouve "corruíra", "desgracida", "deliciado", seus "ais" e "uis" e "ah és", seus lascivos diminutivos sem pensar nos diálogos cruéis e doces, delicados e amargos, entre Joões e Marias, velhos desesperançados e crianças que, nós leitores, sabemos que não sabem de nada —"ai meu jesusinho!".
Dalton Trevisan escreveu cerca de 700 contos em mais de 70 anos de vida literária ativa. Publicou seus livros em grandes editoras —desde 1978, a Record lançava os inéditos e a L&PM, dezenas de antologias organizadas por ele mesmo— e fazia suas próprias edições, pequenos livretos que ele enviava para amigos e críticos desde a década de 1960.
Uma vida literária incansável, que conquistou gerações de leitores devotos, ainda que se recusasse sistematicamente a participar de qualquer convivência literária, dar entrevistas ou mesmo tirar fotos.
Durante quase meio século, a relação com editores era intermediada pela livraria do Chain, que ele frequentava diariamente e que foi seu contato com o mundo. Esse comportamento, digno de um Salinger curitibano, fez com que muito naturalmente tomasse como epíteto o título de um de seus livros mais famosos, o "vampiro de Curitiba".
Há pouco mais de um mês, no início de novembro, Dalton voltou às manchetes, quando foi anunciado que sua obra mudaria de editora, e passaria a ser publicada pela Todavia, negociação conduzida por Fabiana Faversani, agente literária e editora que vêm cuidando com devoção da obra ele nos últimos 18 anos.
Desde "Novelas Nada Exemplares" (1959), "Cemitério de Elefantes" (1964) e "O Vampiro de Curitiba" (1965), os primeiros livros, já era notável a aventura linguística, a voz inconfundível e o talento de observador e ouvinte do mundo real.
A insistência em tornar a literatura coloquial vem com o esmero da palavra exata, ideia enxuta que, não à toa, é transformada, nas reedições que faz dos próprios textos, em aforismos, minicontos e mesmo haicais.
Essas peças, que brilham em livros como "Ah, É?" e "99 Corruíras Nanicas e 101 Ais", são diamantezinhos (o diminutivo!) lapidados. Grande antologista de si mesmo, editava e remontava os próprios livros, o que era sempre uma prova renovada da consciência aguda da sua literatura e do seu caráter experimental e profundamente vivo.
A vida grita nas suas histórias de triângulos amorosos, assassinatos, seduções, traições e espancamentos. Nada do que é humano lhe foi estranho, e ele equilibra suspiros apaixonados com o desejo sádico, juras de amor com amargas palavras finais nesse eterno embate doloroso entre amor e morte, tudo isso catado pelas esquinas mais sombrias de Curitiba.
A aldeia de onde Dalton cantou o mundo foi generosa em tipos que, entre o poético e o prosaico, jamais desistem da necessidade de gozo. O erotismo desesperado, essa volúpia em pânico, é instrumento de sua moral convulsiva, de um crescente humor tragicômico que escala livro a livro, e nesse riso nervoso, entre a ternura e o estrago, Dalton vai ficando cada vez mais crônico. E que sorte a nossa que ele teve tempo para isso.
É desse lugar entre a graça e a desgraça, entre o humor arrancado da observação e o reconhecimento kafkiano do absurdo do mundo, que se construiu a obra de Dalton Trevisan. Seus personagens —vampiros desdentados, marias "desgracidas", bêbados (de álcool e de desejo)— são esse painel de humanidade que ensina a cada página a desilusão e a imaginação, talvez em seus estados absolutos.
Seus contos, a cristalização da linguagem lapidar, equilíbrio perfeito entre palavra e silêncio. E sua voz, o sotaque de um homem só, que soube trazer para a literatura a contaminação exata da vida, temperada com essa maravilhosa mistura de crueldade e doçura, de safadeza e ternura.
"O conto não tem mais fim que o começo", escreve Dalton, nessa fórmula lapidar do que deve ser uma narrativa breve. E o espanto nunca foi motivo para não começar de novo. Excelente momento, portanto, de novas edições, para que o Brasil não pare nunca de se espantar.
E ainda uma história
No começo do ano, quando comecei os preparativos para a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, numa espécie de delírio curatorial, conversando com o Rodrigo Lacerda, então editor do Dalton, disse que sabia que era impossível, mas resolvi assim mesmo convidá-lo. Imaginei que fazia uns 50 anos que ninguém o convidava para um evento desses e achei que seria engraçado poder, enfim, enviar uma cartinha para meu ídolo da vida inteira.
Caprichei no "approach", disse da minha infinita admiração e que eu estava consciente da ousadia do convite. "Sou sua leitora desde a adolescência, e aprendi nos teus livros a alegria redobrada da literatura, a autorização para sempre ser cruel, aquele retrato tão magnífico da vida porque era riscado com precisão e economia, mas que dizia tanto do mundo. Nada me fazia mais feliz que encontrar um livro seu que eu ainda não houvesse lido, e a cada um vinha aquele conforto que os livros que admiramos dão, acrescido do susto delicioso das surpresas inimagináveis. Mas, principalmente, era sempre uma festa da linguagem, da inteligência, da humanidade, do humor dolorido. Não é exagero dizer, Dalton, que gosto tanto de literatura porque foi você que me ensinou..."
O que eu não poderia esperar era uma resposta que fosse uma condensação tão perfeita da sua obra: o humor, a sedução, a ironia, os diminutivos, as elipses, as imagens, tudo: "Você deve ser a mais sedutora das sereias —com um simples aceno, belo gesto de agrados e estilo, fez do velho escritor cansado um destemido Simbad. Sua cartinha me sabe a um punhado de jabuticabas colhidas ali mesmo no tronco.
"Sua proposta seria irrecusável (e —o que é mais— assistido por você) se não fosse a cangalha dos muitíssimos anos e, eu, o último dos tímidos. Já me convenci que, em pleno juízo, nunca mais sairei de meu apartamento, nem falarei em público, ao menos, na primeira pessoa. Afinal, que são esses pobres contos em que tanto me confesso?
"Se você deseja discutí-los na Flip, no lugar do autor: supimpa! Fico à sua disposição, mãozinhas postas. No momento, valem o agrado e o carinho. Grande abraço, todo deliciado, D.T."
Ganhei este prêmio, claro. Mas, sempre que der saudade, tenho comigo seus 700 contos.
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