PL2630: Projeto da Responsabilidade

PL2630: Projeto da Responsabilidade

Em 2020 foi a defesa da minha dissertação de mestrado intitulada “O Limite da Desinformação”. Pesquisei o fenômeno das Fake News sob uma perspectiva social, jurídica e psicológica. Na ocasião fiz uma análise do Projeto de Lei 2630, que já tinha iniciado sua tramitação.

Como esse PL tem sido muito comentado e se tornado objeto de discussões das mais variadas, resolvi dar meus dois dedos de prosa sobre os pontos que estão sendo polemizados.


CENSURA?

O medo do fantasma da censura é justificado em razão da violência perpetrada pelo Estado brasileiro no ainda recente período ditatorial militar. Mas antes de entrar no mérito se há ou não risco de censura, é necessário entender melhor o que é a tão temida censura.

Censura é o ato de proibir ou restringir a circulação de pensamentos e ideias, expressos de forma oral, escrita, gestual ou artística.

A censura é ilegal? Não. Explico: A restrição ou proibição devem (em tese) funcionar com o objetivo de preservar outro direito de maior envergadura. 

Sabe quando um filme, série ou mesmo jogo é lançado com uma indicação etária de 18 anos? Pois então, há uma censura aí, que limita o acesso de pessoas com menos de 18 anos de ter contato com aquele conteúdo. As mídias citadas não estão sendo proibidas, mas apenas tendo seu alcance limitado, com objetivo de preservar o desenvolvimento mental de menores de idade.

Quando uma publicação em rede social é deletada em razão de ordem judicial, houve sim uma aplicação de censura, em razão da violação de direitos que superam a liberdade de expressão. E quando a publicação é deletada pela própria plataforma digital? Bem, nesse caso pode ser por causa de violação de termos de uso.

Mas claro que as situações concretas devem ser analisadas caso a caso.

O que a lei veda é a censura prévia, ou seja, impedir a expressão de pensamento em si. A censura licita é aquela que limita a circulação de certa opinião, após a expressão.

O importante é entender que, com exceção dos direitos de não ser escravizado e não ser torturado, não há direito absoluto. Em caso de legítima defesa ou estado de necessidade, é lícito até tirar uma (ou mais) vida(s).

A liberdade de expressão é um direito de extrema importância para a manutenção do Estado Democrático de Direito, porém possui seus limites.

Até então, o Marco Civil da Internet (MCI) determinava que as plataformas somente seriam responsabilizadas por conteúdos publicados por terceiros quando houver ordem judicial que determine a remoção do conteúdo, ou em caso de conteúdo que envolva exposição sexual, após a solicitação de remoção de pessoas envolvidas no conteúdo.


O PL amplia as possibilidades de responsabilização das plataformas.

·      Quando se tratar de conteúdo patrocinado, isto é, quando a plataforma receber dinheiro para divulgar a publicação;

·      Quando a plataforma falhar no seu “dever de cuidado” (sem polêmicas aqui. O dever de cuidado é o próximo passo na gestão de riscos, ou seja, é execução de todas as medidas possíveis para mitigar riscos observáveis, após relatórios e ponderações, sempre com foco na defesa do Estado Democrático de Direito);


As big techs, por sua vez, estão em forte campanha contra o projeto. Sem novidades, afinal é uma lei que visa trazer mais obrigações e responsabilidades, com fortíssimo impacto financeiro às empresas, que por sinal fazem o mesmo escândalo no continente europeu, com o Digital Services Act (DAS), lei da União Europeia que, vejam, só, basicamente regula o funcionamento dos serviços digitais pelas bandas da “Zoropa”. E assim como aconteceu com o GDPR e a LGPD, claro que tivemos que dar um belo “ctrl+C, ctrl+V” à brasileira e trazer para nossa realidade o que já está sendo bem aplicado no outro lado do oceano.


QUEM VAI FISCALZIAR?

Esse é um ponto delicado. A mera existência de um fiscalizador pode dar margem para abusos regulatórios e intervenção estatal exacerbada. Por outro lado, a ausência de um fiscalizador pode enterrar de vez qualquer eficácia da lei.

O PL trazia em sua redação original a criação de uma entidade específica para este fim, que felizmente foi removida da sua atual versão.

Particularmente penso que a atribuição investigativa pode ser difusa, ou seja, compartilhada entre diversos órgãos, com um procedimento unificado. Ministérios Públicos, Polícias Judiciárias e PROCONs, poderiam deflagrar, por iniciativa própria ou quando provocados, investigações de eventuais irregularidades. Em caso de indícios suficientes de infração, a situação poderia ser escalonada para a SENACOM, que deflagaria processo sancionatório. Em caso de confirmação de violação de direitos fundamentais, o órgão investigador encaminharia a demanda diretamente ao judiciário.

Claro que, dada o provável volume de casos que essa lei pode gerar, os órgãos citados precisariam ser reestruturados para acomodar essa nova atribuição.

Uma forma viável, mas igualmente questionável de resolver, é a adoção do modelo da autorregulação regulada, ou seja, as próprias plataformas organizariam uma estrutura regulatória comum, e essa estrutura, por sua vez, seria fiscalizada por algum órgão de Estado. Dessa forma caberia ao fiscalizador apenas observar se as plataformas estão estruturando e cumprindo suas normas nos termos impostos pela lei. 


IMUNIDADE PARLAMENTAR

Um ponto que chamou a atenção foi o reforço da imunidade parlamentar prevista na Constituição Federal. Há quem pense que isso signifique que parlamentares em suas redes sociais poderão falar qualquer atrocidade, ou espalhar qualquer inverdade e não poderão ter seu conteúdo limitado, bloqueado ou deletado pelas plataformas.

A inviolabilidade de parlamentares por suas palavras e manifestações, faladas ou escritas consta na Constituição Federal e não necessita ser repetida. Trata-se de pleonasmo normativo. Mas a intenção desse reforço é clara, blindar publicações de detentores de mandato eletivo federal.

Essa questão ainda vai ser matéria de muita discussão, e vai ficar a encargo de interpretação de cada jurista. Alguns vão dizer que o parlamentar é uma divindade que desce dos céus e não está sujeito à lei dos homens; outros dirão que a partir de uma interpretação sistémica, o trecho que reforça essa imunidade está previsto em um parágrafo de um artigo, cujo “caput” (cabeça, do latim, se refere a parte principal) começa afirmando que os perfis de agentes públicos são considerados de interesse público. E que definitivamente não é de interesse público a divulgação de afrontas ao Estado Democrático de Direito e mentiras criadas apenas para manipular e confundir.

Os mais ponderados dirão que caberá ao STF determinar essa questão.


OUTROS PONTOS DE DISCUSSÃO

Embora não tenha me debruçado sobre a remuneração de conteúdo jornalístico e direitos autorais, entendo que esses pontos devam ser objeto de regulamentação específica e não figurar como acessórios no PL das fake News, cujo objeto é completamente distinto.


CONCLUSÃO

No geral, entendo o PL como positivo, ao trazer maiores responsabilidades e obrigações para big techs, que possuem um histórico de desrespeito à legislação brasileira.

Eu chamaria de PL da responsabilidade.

Pois ele reforça que a liberdade de expressão não é absoluta, e que o autor de uma publicação deve ser responsabilizado pelos eventuais danos que causar. É até uma questão de maturidade arcar com as consequências de seus atos.

E também por trazer a lógica, já presente tanto no Direito do Consumidor (teoria do risco) quanto no Direito Ambiental (princípio do poluidor pagador), de quem lucra com uma atividade, deve arcar com os danos por ela causados, denominada, em matéria de Direito digital, de responsabilidade algorítmica. 



PS: Fiquei chocado do quanto minha dissertação está desatualizada, e do quanto mudei de opinião. Escrever esse pequeno texto me fez querer atualizar minha pesquisa e quem sabe publicar em forma de livro.


Zeca Darwich

Gerente de TI na NorteRefrigeração

1 a

Excelente texto. 👏

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