Segredos do crime
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Segredos do crime

Histórias policiais, investigações e bastidores dos crimes

Informações da coluna

Vera Araújo

Jornalista investigativa há 30 anos e autora de "Mataram Marielle" e "O Plano Flordelis: Bíblia, Filhos e Sangue". Passou por "Jornal do Brasil" e "O Dia"

RESUMO

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GERADO EM: 04/08/2024 - 04:30

Traficante evangélico impõe ditadura em Complexo de Israel

O Complexo de Israel vive sob o controle ditatorial do traficante Peixão, que se autodenomina evangélico. Com mandados de prisão em aberto, ele impõe suas regras com violência, realizando execuções sumárias e proibindo terreiros de Umbanda. Seu poderio bélico e táticas de guerrilha incluem uso de drones, casamatas e bloqueadores de celulares. O medo e a lei do silêncio predominam, tornando difícil punir os crimes cometidos. Alianças com a milícia e assistencialismo pontual marcam sua atuação.

O dono de um negócio promissor despontava como um empreendedor de sucesso quando o integrante de uma facção criminosa quis furar a fila em sua loja. Simples assim. Organizado, o jovem pediu a ele que respeitasse a ordem de chegada. Naquele momento, assinou sua sentença de morte. Dias depois, não foi mais visto na comunidade da Zona Norte onde nasceu e cresceu. A família, em desespero, descobriu que o rapaz tinha sido sequestrado e submetido ao tribunal do tráfico, que o condenou. O corpo foi jogado num valão e nunca mais encontrado.

Não muito longe dali, em outra comunidade, também foi um “não” que resultou no assassinato de um homem, na frente do filho. O morador apenas pediu ao chefe do tráfico que não fizessem a laje de sua casa de banheiro, o que o obrigava a limpar dejetos dos bandidos. Os dois casos ocorreram nos últimos quatro anos. As duas favelas pertencem ao mesmo dono: Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, de 37 anos, fundador do Complexo de Israel, uma espécie de sub facção inserida no Terceiro Comando Puro (TCP). Ele impõe suas regras como um ditador. Nunca foi preso. Há seis mandados de prisão contra o traficante, segundo o Banco Nacional de Mandados de Prisão do Conselho Nacional de Justiça.

Os desaparecimentos e as execuções sumárias são prática comum nas dez favelas sob domínio de Peixão, que espalha pelos muros das comunidades que invade símbolos bíblicos e frases como “Jesus é o dono desse lugar”. Apesar de fazer parte da facção Terceiro Comando Puro (TCP), ele batizou seu território de Complexo de Israel. Com 79 anotações em sua Ficha de Antecedentes Criminais, mas sem nunca ter pisado numa prisão, o bandido ostenta seu poder no alto de uma caixa d’água, onde instalou uma grande Estrela de Davi — símbolo de proteção para os israelenses — iluminada. A estrutura em néon pode ser vista até da Linha Vermelha.

Policiais em operação na casa do traficante Peixão. O local tem um painel que reproduz a cidade de Jerusalém — Foto: Editoria de Arte
Policiais em operação na casa do traficante Peixão. O local tem um painel que reproduz a cidade de Jerusalém — Foto: Editoria de Arte

A cruzada da quadrilha de Peixão, que diz ser evangélico, agora é para anexar mais favelas ao seu complexo. As principais são: Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica-Pau, onde vivem 134 mil pessoas. Os soldados do tráfico já adotaram até um uniforme, idêntico ao fardamento do Exército de Israel, na cor verde-oliva. Recentemente, foram conquistadas as comunidades da Tinta e Dourados, em Cordovil. Fora da capital, ele dá as ordens em pelo menos três outras localidades da Baixada Fluminense: Parque Paulista e Massapê, em Duque de Caxias, e Buraco do Boi, em Nova Iguaçu.

Traficantes do Terceiro Comando Puro — Foto: Editoria de Arte
Traficantes do Terceiro Comando Puro — Foto: Editoria de Arte

Os mais recentes alvos do bando são Morro do Quitungo e Guaporé, em Brás de Pina, controlados pelo Comando Vermelho. As investidas têm deixado moradores acuados e refletido até na Avenida Brasil, que corta a região e vem sofrendo interdições por causa de balas perdidas. De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, plataforma que faz uma contagem do tiroteio nosso de cada dia, houve 29 registros de confrontos nas favelas da região este ano, até agora, contra 25 em 2023 inteiro.

Muro com o desenho da Cruz de Davi, em Parada de Lucas — Foto: Christina Vital,
Muro com o desenho da Cruz de Davi, em Parada de Lucas — Foto: Christina Vital,

As favelas do Complexo de Israel — Foto: Editoria de Arte
As favelas do Complexo de Israel — Foto: Editoria de Arte

'Um traficante evangélico'

Peixão se autodeclara “traficante evangélico”. O criminoso usa a religião para justificar ações como seu ímpeto de ampliar territórios. Ele conta que, em 2016, teve uma visão, na qual precisava “libertar o povo da Alta”, referência ao conjunto habitacional da Cidade Alta, em Cordovil. O local é formado por 64 prédios de cinco andares, entregues em 1969 a moradores da Praia do Pinto, no Leblon, na Zona Sul, favela destruída por um incêndio. A suposta visão foi a senha para a quadrilha de Peixão invadir a área.

Estrela de Davi sobre caixa d'água no Complexo de Israel — Foto: Editoria de Arte
Estrela de Davi sobre caixa d'água no Complexo de Israel — Foto: Editoria de Arte

Pesquisadores ouvidos pelo blog Segredo do Crime explicam que algumas igrejas evangélicas acreditam que sonhos e visões são formas de Deus enviar suas mensagens. Peixão estaria apregoando, portanto, que o domínio daquela região da Zona Norte é um projeto dele, sob as bênçãos do divino.

Por estratégia ou não, o fato de haver uma maioria evangélica nas favelas — um número que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pretende divulgar em detalhes até o fim do ano — faz com que o chefe do tráfico do Complexo de Israel consiga convencer alguns moradores de que, apesar de suas atividades criminosas, compartilha a mesma fé cristã. A exceção são aqueles que cruzaram seu caminho, afirmam os pesquisadores ouvidos pelo GLOBO.

O traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão — Foto: Editoria de Arte
O traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão — Foto: Editoria de Arte

— Não tem como fazer justiça. Quem mora em favelas dominadas por ele (Peixão) não tem direito de ir e vir, nem direito de enterrar quem se ama — lamentou o parente de um desaparecido numa das favelas do Complexo de Israel.

Fossos como na Idade Média

Por conta das guerras com rivais e as trocas de tiros com a polícia, entrar no Complexo de Israel é outro problema para quem vive nas favelas locais. Além do risco de serem atingidos por balas perdidas, os moradores têm dificuldade de chegar com seus carros e estacionar perto de casa. Embora ainda haja barricadas de concreto, o chefe do tráfico tem construído fossos, à moda medieval, para impedir o acesso dos blindados da polícia. Quando alguém da comunidade precisa passar, os criminosos colocam placas de madeira sobre as crateras. Mas isso,claro, só em momentos de trégua.

As táticas de guerrilha urbana não param por aí. O bando também tem como estratégia construir casamatas (fortificações com a abertura de pequenos espaços em muros de concreto, conhecidos como seteiras, para apoiar canos de fuzil). Em maio do ano passado, em Parada de Lucas, berço do Complexo de Israel, a Polícia Civil deparou com um abrigo deste tipo instalado numa igreja inacabada. De lá era possível vigiar os principais acessos à favela na Avenida Brasil e na Avenida Bulhões de Marcial, que margeia a linha férrea, de Parada de Lucas a Vigário Geral. Na operação, os agentes apreenderam 15 fuzis, duas metralhadoras, milhares de balas e 21 granadas, o que comprova o poderio bélico de Peixão. Segundo moradores, o bandido é acompanhado sempre por vários seguranças e um carro com uma metralhadora .50, cujo tiro é capaz de perfurar a blindagem de um caveirão da polícia.

Bando usava igreja inacabada como casamata para fazer disparos contra policiais

Bando usava igreja inacabada como casamata para fazer disparos contra policiais

O pavor das famílias da região inibe denúncias e faz com que vigore a lei do silêncio. Na folha corrida do bandido, há 21 homicídios e nove anotações por ocultação de cadáver. Há ainda dez registros de intolerância religiosa, além de violação de domicílio e ameaça. Na era Peixão, em meados de 2010, se iniciou uma perseguição às religiões de matriz africana. Há ocorrências de terreiros invadidos e destruídos. Integrantes do bando dão o recado para líderes religiosos desses espaços saírem de imediato: muitos vão embora apenas com a roupa do corpo.

Barricada é retirada pela PM de favela do Complexo de Israel — Foto: Editoria de Arte
Barricada é retirada pela PM de favela do Complexo de Israel — Foto: Editoria de Arte

Moradores e pesquisadores contam que o ódio do traficante pelas religiões de matriz africana tem um motivo familiar. A mãe dele, Ana Lúcia Santa Rosa, foi mãe de santo e, por razões desconhecidas, teria deixado a crença e se tornado evangélica. Ela passou a frequentar uma igreja com os filhos, e Peixão chegou à posição de obreiro — auxiliar de pastores nos cultos. Apontado pela Polícia Civil como traficante, matador e mandante de execuções, ele é visto frequentemente com a mulher e dois filhos num templo em Parada de Lucas, favela onde foi criado, apesar de ter nascido em Duque de Caxias, na Baixada.

O mal pela raiz

O radicalismo de Peixão chegou a tal ponto que uma das versões para um desmatamento ocorrido em Vigário Geral dá conta de que ele, ao saber do suposto trabalho de macumba feito por um inimigo na raiz de uma árvore, para matá-lo, ordenou a derrubada de todas as árvores da área. Outra explicação, mais prosaica, seria a necessidade da retirada da vegetação local para a liberação de calçadas.

Em tempos de redes sociais, nem tudo que é atribuído a Peixão é verdade ou pode ser comprovado. No mês passado, circulou pela internet a informação de que os padres das igrejas de Santa Edwiges e de Santa Cecília, em Brás de Pina, tinham sido proibidos de celebrar missas e fazer quermesses. A Arquidiocese negou. Segundo moradores, no entanto, por precaução, algumas atividades foram adiadas ou mudaram de horário.

Despojos humanos em sacos no valão

Apesar das muitas acusações contra Peixão, os crimes têm ficado sem castigo. A Polícia Civil enfrenta dificuldades para investigar e obter provas, porque ninguém na favela quer testemunhar. O Ministério Público, muitas vezes, faz a denúncia, mas o réu não é pronunciado, ou seja, não chega a ser julgado pelo júri por falta de provas. O resultado é o arquivamento das ações.

Nos processos por homicídio, analisados pelo blog Segredos do Crime, há poucos depoimentos, todos na fase de inquérito, geralmente de algum parente da vítima. Nesses casos, sequer há corpos. A Promotoria já recebeu denúncias de que todos vão parar num valão dos fundos de Vigário Geral, favela conquistada pelo TCP no fim de 2007.

Um trecho de uma das denúncias contra Peixão, extraído de um processo que tramita no Tribunal de Justiça do Rio, cita o drama de uma família em busca de um corpo em Vigário Geral:

"O comunicante iniciou suas buscas por entre diversos sacos de lixo pretos, que podiam ser encontrados na água, mas quase amontoados próximo de uma barreira que acaba contendo todo o lixo que ali é despejado. O barqueiro chegou a puxar alguns desses sacos que estavam rasgados em razão de ataques de urubus e pode ver que muitos dos sacos traziam em seu interior despojos humanos. O comunicante não conseguiu reconhecer nenhum dos corpos".

Drones, hacker e veto a celulares nas ruas

Este ano, pelo menos sete pessoas constam oficialmente como desaparecidas na região do Complexo de Israel. Um ofício enviado à Polícia Militar pelo presidente da Comissão de Segurança Pública e Assuntos de Polícia da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), o deputado Márcio Gualberto, pede informações e providências sobre o sumiço, no dia 17 de junho de 2023, de nove pessoas em Parada de Lucas. De acordo com o documento, elas desapareceram por serem consideradas por Peixão informantes do grupo rival.

O chefão criminoso é um obstinado quando se trata de infiltrados. Até porque ele próprio costuma cooptar traficantes entre os inimigos para obter informações. Não à toa, foi o primeiro a introduzir o uso de drones para vigilância em suas áreas, a fim de acompanhar a movimentação da polícia e dos concorrentes. Os moradores acreditam que Peixão conta com o serviço de um hacker, que o ajuda a monitorar ligações telefônicas.

Quem mora nas comunidades do Complexo de Israel é proibido de usar telefones na rua, principalmente quando Peixão está na área. Mesmo quem tenta infringir a regra ainda tem dificuldades porque o tráfico comprou aparelhos bloqueadores de celulares, que foram instalados em alguns pontos para atrapalhar a comunicação da polícia. As famílias também não podem ter em casa telefone fixo, porque não seria possível monitorar essas ligações.

O uso da tecnologia se estende para situações corriqueiras nos negócios do chefe do Complexo de Israel. Máquinas de cartões, por exemplo, já foram apreendidas em ações da polícia para o pagamento de drogas. A Polícia Civil acredita que há uso de "laranjas", pessoas que emprestam seus dados pessoais ao tráfico). Outra novidade que mostra tal modernidade foi a utilização de uma máquina para pôr a drogas em envelopes. Antigamente, eram os próprios traficantes que faziam isso manualmente.

Expansão das cercanias

Em sua guerra expansionista, Peixão anexou mês passado dois territórios do inimigo Comando Vermelho: Tinta e Dourados, em Cordovil. As duas são estratégicas para evitar que o “Exército do Deus Vivo”, A “Tropa do Peixão” ou o “Bonde dos Taca Bala” — nomes pelos quais a quadrilha é conhecida — fique vulnerável, uma vez que são próximas da Cinco Bocas e da Pica-Pau. Poderiam servir de esconderijos para uma ação de invasão, por exemplo.

— Eu e alguns donos de terreiros estamos saindo, porque já recebemos o recado na semana passada. Estamos sem sossego. Semana passada, meu vizinho levou tudo de seu centro em duas kombis. Eu saí com a roupa do corpo. E olha que meu terreiro nem está em área de favela. Estava lá há 20 anos. O cara de Israel (Peixão) disse que não gosta de umbanda — revelou uma mãe de santo de Cordovil, bairro recém-anexado pelo TCP.

Na disputa do TCP com o Comando Vermelho pelas duas localidades, o morador sempre perde. No dia 25 de julho, equipes de emergência da Light tiveram que fazer um reparo emergencial na Favela do Quintungo. Bandidos atiraram contra o transformador, deixando o local sem luz por uma semana. Os técnicos só conseguiram ir ao local escoltados pela Polícia Militar.

Obsessão por limpeza

Apesar da opressão e do risco constante de invasão, há moradores que apreciam algumas características de Peixão, como sua mania de limpeza. Uma das ordens que devem ser cumpridas à risca no complexo é a de não jogar lixo nas ruas, pois há dia certo para a coleta. Entulhos devem ser devidamente embalados para que sejam recolhidos pela Comlurb.

O bandido criou um sistema de limpeza urbana com garis comunitários, pagos com o ágio cobrado sobre produtos que os moradores têm que adquirir com exclusividade em determinados estabelecimentos, a preços mais caros — prática comum da milícia. Gás de cozinha, garrafões de água, cigarros (de marcas famosas a paraguaios), carvão, material de limpeza (vassouras e desinfetante) e até ovos devem ser comprados nas mãos do pessoal do chefe do tráfico. Um botijão de gás sai por R$ 140, enquanto fora da favela o preço é R$ 85. O mesmo grupo explora internet e transporte alternativo como vans e carros de aplicativo. A linha de ônibus que circulava na Cidade Alta, por exemplo, foi proibida de passar pelo local.

Alianças com a milícia

O flerte de Peixão com milicianos, mais precisamente com seis policiais militares da ativa, vem sendo investigada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. Os PMs foram denunciados pelo promotor Alexandre Murilo Graça, em 2020, por se associarem ao chefe do tráfico para a execução de dois moradores de Brás de Pina. A motivação do crime, segundo a promotoria, ainda é nebulosa. As hipóteses são a falta de pagamento de serviços da milícia ou a ligação das vítimas com o grupo rival ao de Peixão.

A restrição de pessoas de fora nas comunidades do Complexo de Israel é clara. Mesmo assim, há raras exceções, quando o próprio Peixão promove seus shows com artistas famosos, além de festas comunitárias, como o dia das crianças e o Natal. Embora não exija dinheiro de comerciantes, ele “sugere” que eles contribuam com as comemorações.

O assistencialismo do tráfico do passado está presente em situações pontuais. Em 2021, o traficante construiu uma ponte sobre o Rio Irajá, unindo as favelas Pica-Pau e Cinco Bocas. Embora a obra facilitasse a vigilância de suas novas conquistas à época, a construção acabou sendo uma maneira de promoção de sua gestão. A ponte era uma promessa da prefeitura e, segundo redes sociais na época, o bandido teria prestado contas de que pagou R$ 300 mil pela obra.

Ponte sobre o rio Irajá, construída por ordem de Peixão, para facilitar a passagem de bandidos entre as favelas Cinco Bocas e Pica-Pau, sob seu domínio, em Cordovil — Foto: Reprodução da TV
Ponte sobre o rio Irajá, construída por ordem de Peixão, para facilitar a passagem de bandidos entre as favelas Cinco Bocas e Pica-Pau, sob seu domínio, em Cordovil — Foto: Reprodução da TV

A Secretaria estadual de Polícia Civil informou, por nota, que “as investigações seguem para identificar e responsabilizar criminalmente todos os envolvidos, bem como para capturar o líder da organização”. Também divulgou que 17 integrantes do bando de Peixão foram presos, além de ter apreendido “grande quantidade de armamento”, fato que ocorreu há um ano.

Procurados, os advogados de Peixão, Jorge e Thiago Santoro, não se pronunciaram sobre as denúncias contra o traficante.

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