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O Alentejo pode ser definido como a região ao sul de Portugal, entre o rio Tejo e o Algarve. Mas basta avistar a imensidão de parreiras (ora verdes, ora avermelhadas), as casas branquinhas de cal ou os sobreiros retorcidos para saber que você só pode estar por lá. Explorá-lo é vivenciar sensações únicas, aproveitando cada instante com tranquilidade para se desconectar: desde saborear a comida típica e o vinho local a sentir a brisa suave de outono.

O enoturismo no Alentejo é muito mais que seus vinhos: é também mergulhar nas tradições, na história e nas festividades que dão vida à cultura alentejana. Perfeito para quem, como eu, aprecia a bebida casualmente, mas que está disposto a aprender um pouco mais a cada visita às vinícolas. Compartilho um pouco do que aprendi por lá, em alguns conceitos-chave— quem sabe não te inspiro para a sua próxima viagem?

A de Ancestralidade

Talhas: as ânforas em que se produzem vinhos como no Império Romano — Foto: Arquivo Pessoal
Talhas: as ânforas em que se produzem vinhos como no Império Romano — Foto: Arquivo Pessoal

A pequenina Vila de Frades, com seus 799 habitantes (de acordo com o último censo de 2021) é considerada a capital do vinho de talha. Essas ânforas de barro marcam a herança ancestral de uma produção de vinhos trazida pelos Romanos em sua conquista do território português. Há 250 anos, a adega Gerações da Talha preserva esse savoir-faire milenar entre os membros de sua família.

Depois de colhidas, as uvas são prensadas e colocadas nas talhas. Lá, elas permanecem durante o processo de fermentação espontânea, até que as partes sólidas da uva decantem no fundo. Essa massa é chamada de “mãe”, que servirá de filtro natural uma vez que a talha for aberta para o consumo. Tradicionalmente, isso ocorre no dia 11 de novembro, Dia de São Martinho, sendo assim certificado como um verdadeiro vinho de talha pela Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA). A tradição virou festa e ditado: “Dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho”.

Para conhecer: Vinho “Natalha Palhete”, da Gerações da Talha

O palhete é um vinho português que mistura uvas brancas e tintas. Sua origem remonta aos frades capuchos, que, na escassez das uvas mais avermelhadas, adicionavam somente pequenas quantidades para dar a cor tradicional do sangue de Cristo para a eucaristia. Sua versão com produção na talha é um caso de ame ou odeie— seco e com mais acidez.

B de Biodiversidade

É possível degustar vinhos com uvas quase extintas no paço medieval da Fita Preta — Foto: Arquivo Pessoal
É possível degustar vinhos com uvas quase extintas no paço medieval da Fita Preta — Foto: Arquivo Pessoal

Além da investigação arqueológica da Fita Preta com a restauração do Paço de 1307, onde se localiza, a vinícola também tem a missão de recuperar antigas castas locais— ou seja, produzir vinhos a partir das uvas nativas alentejanas, das quais muitas estavam quase extintas.

A questão do resgate das castas indígenas é papo sério no Alentejo— várias vinícolas insistem em incluí-las, mesmo que em pequenas quantidades, em seus blends, quase como um “tempero” de regionalidade.

Toda recuperação anda lado a lado com pesquisa, é claro: na Herdade do Esporão, foi criado um campo ampelográfico. Lá, estão plantadas 189 castas diferentes, entre variedades portuguesas e estrangeiras, com três regimes distintos de água. O objetivo é estudar a adaptação de cada uma às alterações climáticas, avaliar suas potencialidades e preservar esse patrimônio.

Para conhecer: Vinho “Tinta Carvalha”, da Fita Preta

Um vinho monocasta (feito de uma só uva) da variedade alentejana Tinta Carvalha. Seu estilo remonta aos vinhos medievais, menos alcoólicos (uma vez que substituiam a água, que nessa época era muitas vezes impura pelas condições sanitárias). Bebê-lo em meio à uma capela do séc. XVI, partindo um pão entre colegas, foi uma experiência quase religiosa.

C de Cultivo Consciente

Sustentabilidade é a palavra chave nas vinícolas alentejanas — Foto: Arquivo Pessoal
Sustentabilidade é a palavra chave nas vinícolas alentejanas — Foto: Arquivo Pessoal

À primeira vista, tecnologia e sustentabilidade parecem ser conceitos opostos quando pensamos em uma produção 100% orgânica. Porém, a verdade é que eles são indissociáveis, principalmente ao se tratar de propriedades de grande porte como a Herdade do Esporão. Com tamanho suficiente para representar 11% da produção orgânica de vinhos em Portugal, utilizam-se protocolos de inteligência artificial, voos de drone e sensores de previsão meteorológica para a prevenção de pragas e doenças.

Na campanha de seus famosos azeites, o circuito é fechado— todos os caroços das azeitonas são queimados em caldeiras que produzem energia térmica usada pelos maquinários. Com a água, o ciclo é parecido: tudo é otimizado para o reuso, seja nas irrigações, seja na limpeza.

Na Tapada dos Coelheiros, o pensamento é o mesmo com diferentes processos. Aqui, os animais da fauna local ajudam a manter o equilíbrio. Exemplos disso vão desde o rebanho com 600 carneirinhos recém-nascidos que fazem o pastoreio do bosque de nogueiras ou o novo projeto dos “corredores ecológicos”, onde a flora local foi replantada para atrair de volta os insetos típicos da região.

Para conhecer: Vinho “Tapada de Coelheiros Branco”, da Tapada de Coelheiros

Fresco e elegante, com blend das uvas portuguesas Roupeiro e Arinto, esse rótulo está em produção biodinâmica desde 2020. O que isso significa? Um retorno à uma agricultura ancestral e holística, em que respeita-se até as fases da lua.

D de Degustação

A gastronomia foca em itens frescos e sazonais — Foto: Arquivo Pessoal
A gastronomia foca em itens frescos e sazonais — Foto: Arquivo Pessoal

Entre todas as relações que o vinho estabelece, a mais divertida, sem dúvidas, é aquela com nós mesmos e os nossos sentidos.

Temos, em senso comum, aquela imagem um tanto pretensiosa de uma degustação, como um jogo de adivinhação: vinho amadeirado, frutado; notas disso ou daquilo. Descobri no Alentejo— e foi dito por unanimidade pelos especialistas onde quer que estivesse— que não existem, na verdade, respostas certas ou erradas. Degustar é trazer à tona sensações que são unicamente suas. Um vinho lembrou um colega de uma árvore plantada perto da casa da sua avó, e a pasta de cenoura no couvert na mesma noite tinha exatamente o tempero das sopas da minha mãe (apesar do chef ter depois me contado que a receita original era da corte Portuguesa do séc. XVII).

Entre tradição e experimentalismo, há um fator em comum que percebi na gastronomia alentejana: o primor nas matérias-primas. O conceito From Farm to Table é palavra-chave na região, valorizando sempre alimentos com produção local (muitas vezes na horta da própria propriedade) e itens sazonais. E sente-se a diferença a cada garfada: o sabor das coisas mais simples como os tomates-cerejas e as laranjas serão difíceis de esquecer.

Esse zelo pela sustentabilidade garantiu a Estrela Verde Michelin aos restaurantes das vinícolas da Herdade da Malhadinha Nova e da Herdade do Esporão. Destaco também o jantar inspirado pela história da gastronomia portuguesa na vinícola Mainova pelo chef João Narigueta, esse com uma estrela Bib-Gourmand Michelin— a que se dedica a elencar boa cozinha a bons preços. Tem coisa melhor?

Para conhecer: Vinho “Moinante Curtimenta”, da Mainova

Quando falamos de harmonização entre vinhos e comida, a máxima, muitas vezes, funciona mesmo: tintos para carnes vermelhas, brancos para peixes. Fica aqui a minha dica de algo diferente: os vinhos laranja são vinhos brancos fermentados com a casca. Esse, além da cor alaranjada, também tem notas da fruta (assim como outras tropicais) e pode ser boa pedida para a hora da sobremesa.

E de Engajamento

Adega Cartuxa, destino turístico popular entre brasileiros em Évora — Foto: Arquivo Pessoal
Adega Cartuxa, destino turístico popular entre brasileiros em Évora — Foto: Arquivo Pessoal

A Cartuxa é mais conhecida pelo seu rótulo estrelado: o Pêra Manca Tinto, que vez ou outra viraliza com preços exorbitantes (uma garrafa da safra de 2018, lançada em outubro, dificilmente é encontrada por menos de R$4.000). Pode surpreender o fato de que, por trás da adega, está a Fundação Eugénio de Almeida. Sem fins lucrativos, ela tem como objetivo ajudar a comunidade local, em Évora. Entre as iniciativas estão bolsas de estudos, workshops, uma cantina social e a venda, uma vez por ano, de seus vinhos a granel pelo valor simbólico de €3 por litro.

A valorização das comunidades locais e da cultura está no centro do engajamento social de várias vinícolas. Na Quinta do Quetzal, a devolução para a sociedade está na galeria de arte contemporânea criada junto ao restaurante. Lá, é possível aproveitar um bom vinho, uma linda vista e de quebra conhecer exposições de artistas emergentes montadas a cada 6 meses.

Essa relação é ainda mais intrínseca na Mainova. Fundada por Bárbara Monteiro, a mais nova de três mulheres decidiu honrar a feminilidade em sua vinícola. Isso pode ser visto de cara, nos rótulos dos vinhos Mainova, que levam uma mulher fazendo a vindima, ou seja, a colheita das uvas, já que na empresa elas são maioria.

Para conhecer: Vinho “Scala Coeli”, da Cartuxa

Por trás da história de filantropia da Cartuxa está sua origem com os monges da ordem de mesmo nome. Esse vinho homenageia o Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli (do latim, Escada Para o Céu), local onde os monges cartuxos viviam de silêncio e oração. Suas safras nunca são iguais, pois resultam sempre das melhores uvas de cada colheita. Divino, de fato.

F de Férias Offline

A hotelaria de luxo da Herdade da Malhadinha Nova é conectada com a natureza — Foto: Arquivo Pessoal
A hotelaria de luxo da Herdade da Malhadinha Nova é conectada com a natureza — Foto: Arquivo Pessoal

Se até aqui ainda não te convenci que o Alentejo deveria ser seu próximo destino, aqui vai a minha cartada final: a nova hotelaria da região ressignifica o luxo. Durante a minha estadia na Herdade da Malhadinha Nova, esqueci do celular quase sem querer e aproveitei o som do silêncio e o despertar com o nascer do sol.

Os alojamentos fogem dos tradicionais quartos de hotel. Ao invés disso, são verdadeiras casas, que misturam designs assinados com o charme rural da localização em meio às vinhas. A Casa da Ribeira, onde fiquei, além de seus três dormitórios de 75m2, tem cozinha completa, living com lareira e piscina particular. O charme está nos detalhes: cada alojamento tem uma paleta de cores que dita desde a decoração até as louças com estampas do estilista Oscar de La Renta, os secadores-desejo Dyson, ou a escolha da fragrância das amenities Claus Porto, perfumaria portuguesa com quase 150 anos de história.

É o lugar perfeito para se reconectar com a natureza: ouvir os grilos, assistir um pôr do sol em todos os tons de rosa ou usar os materiais de yoga (todos em cortiça portuguesa) para meditar. À noite, ao voltar para o quarto, você pode encontrar em cima da sua cama um livreto com dicas para um bom sono, editadas diariamente por uma médica neurologista especialista, e a previsão do tempo do dia seguinte, analógica, em papel. Nenhum smartphone é necessário aqui.

Para conhecer: Vinho “Antão Vaz da Malhadinha”, da Malhadinha Nova

Na mesma propriedade, a Malhadinha também produz azeite, mel e, é claro, vinhos. Que tal um monocasta refrescante para conhecer a principal uva branca do Alentejo, a Antão Vaz?

* A designer Manoela Morel fez a viagem para Portugal, que inspirou esta reportagem, a convite do Vinhos do Alentejo (CVRA)

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